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27 abril, 2018
"Não existe uma pílula para cada problema da vida"
Líder da equipe que elaborou o manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), referência mundial da psiquiatria, o americano Allen Frances critica o atual sistema de diagnóstico e a influência da indústria na formação de uma sociedade cada vez mais dependente das pílulas. Confira a entrevista:
[caption id="attachment_551" align="alignright" width="226"] Alka Seltzer, Roy Lichtenstein, 1966[/caption] Qualquer mudança no manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), referência mundial da psiquiatria, pode tirar milhões de pessoas do campo da normalidade. Consciente disso, o psiquiatra americano Allen Frances, líder da equipe que elaborou a redação da quarta e mais importante revisão da publicação, recusou praticamente todas as sugestões de transtornos a serem incluídos no manual, lançado em 1994. Mas com relação ao déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), achou pertinente afrouxar um pouco os critérios para facilitar sua identificação entre as meninas. Com as mudanças, Frances calculava que a incidência de casos fosse aumentar de forma muito discreta, mantendo-se dentro dos 2% a 3% da população infantil. Mas os ajustes na definição somaram-se a uma combinação de fatores sociais e culturais que as garras oportunistas da indústria farmacêutica não deixaram escapar. E o índice de diagnósticos do transtorno disparou no mundo todo, chegando a quadruplicar nos Estados Unidos. Frances não nega sua parcela de culpa. Por isso foi incapaz de observar passivamente o fenômeno do hiperdiagnóstico, - do qual o TDAH é um bom exemplo, mas não é o único. Abandonou a tranquilidade da aposentadoria para sair em defesa da normalidade. Lançou-se a um trabalho de conscientização da necessidade de repensarmos os limites que separam o normal do patológico. Limites que ficaram ainda menos nítidos com o lançamento da quinta revisão do manual (DSM-5), em 2013, trazendo uma série de novos distúrbios e, no caso do TDAH, critérios ainda mais frouxos e subjetivos. Suas considerações e críticas sobre o atual sistema de diagnóstico e a influência da indústria farmacêutica na formação de uma sociedade cada vez mais dependente das pílulas estão no livro Voltando ao Normal, lançado no Brasil pela editora Versal. Ele ressalta que, uma vez fechado um diagnóstico psiquiátrico - o que lamentavelmente é feito, na maioria das vezes, em uma única e rápida consulta - é difícil livrar-se do estigma que ele traz: muda-se o futuro, mudam-se as expectativas do paciente. E, salvo raras exceções, a informação fatalmente vem acompanhada de uma receita médica, o que explica o aumento catastrófico na venda de psicotrópicos nos últimos anos. Ao criar a necessidade das pílulas, tira-se da pessoa o poder de acreditar na própria capacidade de superação, ignorando que a resiliência sempre foi uma das grandes virtudes da humanidade. "À medida que somos levados em direção à medicalização da normalidade, vamos perdendo contato com nossas capacidades de autocura e esquecemos que a maioria dos problemas não são doenças e que raramente a melhor solução para eles está nas pílulas", escreve em seu livro. Não que Frances seja absolutamente contra a medicação. Pode fazer uma grande diferença na vida das pessoas que realmente precisam, costuma dizer. Mas enfatiza que esses casos são raros e que as diferenças que separam a normalidade do transformo severo - seja qual for - são geralmente bastante evidentes. A maioria das pessoas que utiliza os psicotrópicos, crianças inclusive, está recorrendo à medicação para enfrentar preocupações cotidianas e problemas sociais que apenas recentemente deixaram de ser normais. Na entrevista abaixo, o psiquiatra critica as investidas bem-sucedidas da indústria farmacêutica e os problemas do mau uso do manual de diagnósticos psiquiátricos, resultando em uma explosão de diagnósticos e na inevitável medicalização dos problemas cotidianos. [caption id="attachment_545" align="alignright" width="300"] foto: divulgação[/caption]- Como a indústria farmacêutica estimula a venda de medicações psicotrópicas em países onde a propaganda direta ao consumidor é proibida, como no Brasil?
- Você acredita que a popularidade da teoria do "desequilíbrio químico", reforçando a falta de uma substância no cérebro, que só pode ser "reposta" com medicação, afasta as pessoas de soluções que dependem mais de suas próprias capacidades de cura?
- Você acredita que o estilo de vida moderno é, de alguma forma, responsável pelo aumento nas taxas de doenças mentais?
- Sobre o DSM (manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais), você já mencionou que "o livro como foi escrito é diferente do livro como é interpretado". Esse mal uso do manual pode ser considerado a principal causa da inflação diagnóstica ou a expectativa dos pacientes também mudou e eles hoje pressionam mais os médicos a prescrever psicotrópicos?
- O grupo etário que mais consome medicamentos psicotrópicos é o da terceira idade, certo? Poderia explicar o que está por trás desse fato?
- Gostaria de abordar o impacto do efeito placebo no tratamento psiquiátrico. Qual o papel da expectativa do paciente na sua recuperação?
- O índice de adolescentes e pré-adolescentes medicados com antidepressivos é muito alto. Esse tratamento é seguro e eficaz nessa fase?
- Que alternativa a esses tratamentos você recomendaria a adolescentes com alto nível de ansiedade?
- Muitas escolas exigem um diagnóstico psiquiátrico para fornecer adaptações às necessidades das crianças com dificuldade. Essa sistematização no lugar da diferenciação contribui para o exagero dos diagnósticos?
- Os fabricantes dos estimulantes conhecem os efeitos de longo prazo do uso da medicação na infância?
- É comum a prescrição de estimulantes por clínicos gerais ou pediatras?
- De que forma o DSM-IV contribuiu para o aumento dos diagnósticos de TDAH e qual era a real intenção da sua equipe?
- Depois da publicação do DSM-5, em 2013, podemos dizer que as mudanças nos critérios de diagnóstico do TDAH favoreceram o aumento ainda maior da incidência?
- Você defende que a prevalência real de TDAH flutua entre 2% e 3%. Já que não existe comprovação biológica do distúrbio, o que deveria ser levado em consideração para se certificar que a criança pertence a esse pequeno grupo? E para esses, a medicação é sempre necessária?
- Que tipos de problemas psiquiátricos podem piorar com o uso de estimulantes?
- Os antipsicóticos também estão ficando muito populares entre crianças e adultos com diferentes diagnósticos. Existem estudos suficientes sobre a eficácia e segurança dessas drogas?
- Como podemos saber quando confiar nos dados de uma pesquisa relacionada à saúde mental e tratamento farmacológico?
- Sobre o uso excessivo de psicotrópicos, você enxerga alguma mudança nesse cenário em curto prazo?
- Você está planejando o lançamento de seu próximo livro?
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